Em homenagem ao 94º aniversário da Revolução Russa, publicamos a conferência pronunciada por Leon Trotsky em 27 de novembro de 1932, em Copenhague, Dinamarca. Este texto foi publicado na Revista Marxismo Vivo nº 16.
Para começar, fixemos alguns princípios sociológicos elementares que são, sem dúvida, familiares a todos vocês e que devemos, porém, recordar ao tomar contato com um fenômeno tão complexo como a revolução. A sociedade humana é o resultado histórico da luta pela existência e da segurança na preservação das gerações. O caráter da economia determina o caráter da sociedade. Os meios de produção determinam o caráter da economia. A cada grande época no desenvolvimento das forças de produção corresponde um regime social definido. Até agora, cada regime social assegurou enormes vantagens à classe dominante.
É evidente que os regimes sociais não são eternos. Nascem historicamente e transformam-se em obstáculos ao progresso ulterior. “Tudo que nasce é digno de perecer”. Nunca, porém, uma classe dominante abdicou, voluntária e pacificamente, do poder. Nas questões de vida e morte os argumentos fundados na razão nunca substituíram os argumentos da força. É triste dizê-lo. Mas é assim. Não fomos nós que fizemos este mundo. Só podemos tomá-lo tal como é.
A revolução significa uma mudança do regime social. Ela transmite o poder das mãos de uma classe já esgotada para as mãos de outra classe em ascensão. A insurreição constitui o momento mais crítico e mais agudo na luta de duas classes pelo poder. A sublevação não pode conduzir à vitória real da revolução e à implantação de um novo regime senão quando se apoia sobre uma classe progressiva, capaz de agrupar em torno de si a imensa maioria do povo. Diferentemente dos processos da natureza, a revolução realiza-se por intermédio dos homens. Mas na revolução também os homens atuam sob a influência de condições sociais que eles próprios não escolhem livremente, mas que são herdadas do passado e lhes assinalam imperiosamente o caminho. Precisamente por tal motivo, e só por isso, a revolução tem as suas próprias leis. A consciência humana, contudo, não se limita a refletir passivamente as condições objetivas. Ela pode reagir ativamente sobre elas. E, em certos momentos, a reação adquire um caráter de massa, tenso, apaixonado. Derrubam-se então as barreiras do direito e do poder. A intervenção ativa das massas nos acontecimentos constitui o elemento mais indispensável da revolução. E, no entanto, mesmo a atividade mais inflamada pode simplesmente ficar reduzida a uma demonstração, uma rebelião, sem elevar-se à altura de uma revolução. A sublevação das massas deve conduzir à derrubada do poder de uma classe e ao estabelecimento da dominação de outra. Somente assim teremos uma revolução consumada. A sublevação das massas não é um empreendimento isolado que se pode provocar por capricho. Representa um elemento objetivamente condicionado ao desenvolvimento da revolução, que por sua vez é um processo condicionado ao desenvolvimento da sociedade. Isto não quer dizer, entretanto, que, uma vez existentes as condições objetivas da sublevação, deva-se esperar passivamente, com a boca aberta. Nos acontecimentos humanos também há, como disse Shakespeare, fluxos e refluxos, que, tomados em crescente, conduzem ao êxito: “There is a tide in the affairs of men which taken at the flood, leads on to fortune”. Para varrer o regime que sobrevive, a classe progressiva deve compreender que soou sua hora e propor-se à tarefa da conquista do poder. Aqui se abre o campo da ação revolucionária consciente, em que a previsão e o cálculo se unem à vontade e à bravura. Dito de outra forma: aqui se abre o campo da ação do partido.
O partido revolucionário condensa o melhor da classe avançada. Sem um partido capaz de orientar-se nas circunstâncias, de apreciar a marcha e o ritmo dos acontecimentos e de conquistar a tempo a confiança das massas, a vitória da revolução proletária é impossível. Tal é a relação dos fatores objetivos e dos fatores subjetivos da revolução e da insurreição. Como bem sabeis, nas discussões, os adversários — em particular na teologia — têm o costume de desacreditar frequentemente a verdade científica elevando-a ao absurdo. Isto se chama, mesmo em lógica, reductio ad absurdum. Nós vamos tratar de seguir a via oposta, isto é, tomaremos como ponto de partida um absurdo a fim de nos aproximar com maior segurança da verdade. Realmente não temos o direito de lamentar a falta de absurdos. Tomemos um dos mais recentes e mais grossos. O escritor italiano Malaparte, algo assim como um teórico fascista — também existe este produto —, publicou há pouco tempo um livro sobre a técnica do golpe de Estado. O autor consagra um número não desprezível de páginas de sua “investigação” à insurreição de outubro. Diferentemente da “estratégia” de Lenin, que permanece unida às relações sociais e políticas da Rússia de 1917, “a tática de Trotsky não está — segundo os termos de Malaparte — ligada por nada às condições gerais do País”. Esta é a ideia principal da obra. Malaparte obriga Lenin e Trotsky, nas páginas de seu livro, a travar inúmeros diálogos, nos quais os interlocutores dão prova de tão pouca profundidade de espírito como a natureza pôs à disposição de Malaparte. Às objeções de Lenin sobre as premissas sociais e políticas da insurreição, Malaparte atribui a Trotsky, literalmente, a seguinte resposta: “Vossa estratégia exige demasiadas condições favoráveis, e a insurreição não tem necessidade de nada. Basta-se por si mesma”. Entendeis bem? “A insurreição não tem necessidade de nada”. Tal é, precisamente, caros ouvintes, o absurdo que deve servir para aproximar-nos da verdade. O autor repete com muita persistência que, em outubro, não foi a estratégia de Lenin e sim a tática de Trotsky que triunfou. Esta tática, conforme suas palavras, ameaça, ainda hoje, a tranquilidade dos Estados europeus. “A estratégia de Lenin — cito textualmente — não constitui nenhum perigo imediato para os governos da Europa. A tática de Trotsky constitui um perigo atual e, portanto, permanente”. Mais concretamente: “Colocai Poincaré no lugar de Kerensky e o golpe de Estado bolchevique, de outubro de 1917, triunfaria da mesma forma”. É difícil crer que semelhante livro seja traduzido a diversos idiomas e acolhido seriamente. Em vão tentaríamos saber por que a estratégia de Lenin, dependendo das condições históricas, é necessária, se a “tática de Trotsky” permite resolver o mesmo problema em todas as situações. E por que as revoluções são tão raras, se para seu sucesso basta um par de receitas técnicas?
O diálogo entre Lenin e Trotsky apresentado pelo escritor fascista é, no espírito como na forma, uma invenção inepta do princípio ao fim. Muitas invenções desse quilate circulam pelo mundo. Por exemplo, acaba de aparecer em Madri, com meu nome, um livro, Vida de Lenin, pelo qual sou tão responsável como pelas receitas técnicas de Malaparte. O semanário Estampa publicou deste pretenso livro de Trotsky sobre Lenin capítulos inteiros, que contêm ultrajes abomináveis à memória do homem que eu estimava e que estimo incomparavelmente mais que qualquer outro entre os meus contemporâneos. Abandonemos, entretanto, os falsários à sua sorte. O velho Wilhelm Liebknecht, pai do combatente e herói imortal, Karl Liebknecht, costumava dizer: “O político revolucionário deveria estar provido de uma pele grossa.” O doutor Stockmann, mais expressivo ainda, recomendava a todos os que se dispõem a enfrentar a opinião pública a não vestir calças novas. Sigamos, então, estes dois bons conselhos e passemos à ordem do dia.
Quais as perguntas que a Revolução de Outubro sugere a todo homem reflexivo? Primeira: por que e como esta revolução obteve êxito? Ou, mais concretamente, por que a revolução proletária triunfou em um dos países mais atrasados da Europa? Segunda questão: o que trouxe a Revolução de Outubro? E por último: concretizou-se o que dela se esperava?
Pode-se responder à primeira pergunta — sobre as causas — de modo mais ou menos completo. Tentei fazê-lo o mais explicitamente possível na minha História da Revolução Russa. Aqui, não posso fazer outra coisa senão formular as conclusões mais importantes. O fato de o proletariado ter chegado ao poder pela primeira vez em um país tão atrasado como a antiga Rússia czarista só à primeira vista pode parecer misterioso. Na realidade, resulta de uma lógica rigorosa. Podia-se prever. E foi previsto. Mais ainda: diante dessa perspectiva, os revolucionários marxistas elaboraram a sua estratégia muito antes dos acontecimentos decisivos. A primeira explicação e a mais geral: a Rússia é um país atrasado. Mas, também, a Rússia não é mais que uma parte da economia mundial, um elemento do sistema capitalista mundial. E Lenin resolveu o enigma da Revolução Russa com a seguinte fórmula lapidar: a corrente rompeu-se pelo seu elo mais fraco. Uma situação clara: a grande guerra, produto das contradições do imperialismo mundial, arrastou em seu torvelinho países que se achavam em diferentes etapas de desenvolvimento e impôs a todos as mesmas exigências. Resulta, pois, que os encargos da guerra se tornariam mais insuportáveis, particularmente, para os países mais atrasados. A Rússia foi o primeiro que se viu obrigado a ceder terreno. Mas, para sair da guerra, o povo precisava abater as classes dominantes. Foi assim que a corrente da guerra rompeu-se pelo seu elo mais frágil. Mas a guerra não é uma catástrofe determinada por fatores alheios, como um terremoto. Para o velho Clausewitz, é a continuação da política por outros meios. Durante a guerra, as tendências principais do sistema imperialista de tempos de “paz” apenas se exteriorizaram de modo mais agudo. Quanto mais elevadas sejam as forças gerais de produção; quanto mais tensa seja a concorrência mundial; quanto mais se acirrem os antagonismos; quanto mais desenfreada seja a corrida armamentista, tanto mais penosa se torna a situação para os participantes mais fracos. Precisamente esta é a causa pela qual os países mais atrasados ocupam o primeiro lugar na série dos desmoronamentos. A corrente do capitalismo tende sempre a romper-se pelos elos mais fracos. Se por causa de certas circunstâncias extraordinárias ou extraordinariamente desfavoráveis — por exemplo, uma intervenção militar vitoriosa do exterior, devida a faltas irreparáveis do próprio governo soviético —, se restabelecesse o capitalismo sobre o imenso território soviético, sua inevitável insuficiência histórica aprontaria, rapidamente, sua nova queda, vítima das mesmas contradições que provocaram, em 1917, a explosão. Nenhuma receita tática poderia dar vida à Revolução de Outubro se a Rússia não a levasse nas suas próprias entranhas.
O partido revolucionário não pode desempenhar outro papel senão o de parteiro que se vê obrigado a recorrer à operação cesariana. Poderiam objetar-me: suas considerações gerais podem explicar, suficientemente, por que razão a velha Rússia (este país onde o capitalismo atrasado, com uma classe camponesa miserável, estava coroado por uma nobreza parasitária e, além disso, por uma monarquia putrefata) teria que naufragar. Mas na imagem da corrente e do elo mais fraco falta ainda a chave do enigma: como, num país atrasado, poderia triunfar a revolução socialista? Porque a história conhece muitos exemplos de decadência de países e de culturas que, após a derrocada simultânea das velhas classes, não puderam achar nenhuma forma progressiva para ressurgir. A derrocada da velha Rússia deveria, ao que tudo indica, transformar o país em uma colônia capitalista e não em um Estado socialista. Esta objeção é muito interessante e nos leva diretamente ao coração do problema. Mas é viciosa. Eu diria: desprovida de proporção interna. De um lado, decorre de uma concepção exagerada quanto ao atraso da Rússia. De outro, de uma falsa concepção teórica no que diz respeito ao fenômeno do atraso em geral.
Os seres vivos — naturalmente, entre eles, o homem — atravessam, com relação à idade, estágios de desenvolvimento semelhantes. Numa criança normal de cinco anos, encontra-se certa correspondência entre o peso, a altura e os órgãos internos. Mas isto não ocorre com a consciência humana. Em oposição à anatomia e à fisiologia, a psicologia, tanto a do indivíduo como a da coletividade, distingue-se por uma extraordinária capacidade de assimilação, flexibilidade e elasticidade: reside aí também a vantagem aristocrática do homem sobre seu parente zoológico mais próximo da espécie dos macacos. A consciência, susceptível de assimilar, confere — como condição necessária ao progresso histórico — aos “organismos” chamados sociais, ao contrário dos organismos reais, isto é, biológicos, uma extraordinária variabilidade da estrutura interna. No desenvolvimento das nações e dos Estados, dos capitalistas em particular, não existe nem similitude nem uniformidade. Diferentes graus de cultura, até os polos opostos, aproximam-se e combinam-se, com muita frequência, na vida de um país. Não esqueçamos, caros ouvintes, que o atraso histórico é uma noção relativa. Se existem países atrasados e avançados, há também uma ação recíproca entre eles. Há a opressão dos países avançados sobre os retardatários, bem como a necessidade para os países atrasados de alcançar aqueles mais adiantados, adquirir-lhes a técnica, a ciência etc. Assim surgiu um tipo combinado de desenvolvimento: as características mais atrasadas se ligam à última palavra da técnica e do pensamento mundiais. Enfim, os países historicamente atrasados são por vezes obrigados a ultrapassar os demais. A elasticidade da consciência coletiva confere a possibilidade de conseguir, em certas condições, sobre a arena social, o resultado que em psicologia individual se chama “compensação”. Pode-se afirmar, neste sentido, que a Revolução de Outubro foi para os povos da Rússia um meio heroico de superar sua própria inferioridade econômica e cultural.
Passemos sobre essas generalizações histórico-políticas, que talvez sejam um tanto abstratas, para enfocar a mesma questão de modo concreto, isto é, através de fatos econômicos vivos. O atraso da Rússia do século XX se expressa, mais claramente, da seguinte maneira: a indústria ocupa no país um lugar mínimo, em comparação ao campo. Isto significa, no conjunto, uma baixa produtividade do trabalho nacional. Basta dizer que, às vésperas da guerra, quando a Rússia czarista alcançara o auge de sua prosperidade, a renda nacional era de oito a dez vezes inferior a dos Estados Unidos. Isto expressa numericamente a “amplitude” do atraso, se é que podemos usar a palavra “amplitude” no que se refere ao atraso. Ao mesmo tempo, a lei do desenvolvimento combinado manifesta-se, a cada passo, no domínio econômico, tanto nos fenômenos simples como nos complexos. Quase sem estradas nacionais, a Rússia viu-se obrigada a construir ferrovias. Sem haver passado pelo artesanato e pela manufatura europeias, a Rússia saltou diretamente para a produção mecanizada. Saltar as etapas intermediárias, este é o caminho dos países atrasados. Enquanto a economia camponesa permanecia, frequentemente, ao nível do século XVII, a indústria da Rússia, se não na capacidade, pelo menos em seu tipo, encontrava-se no mesmo nível dos países avançados e até superava-os em muitos aspectos.
Assinale-se que as empresas gigantes com mais de mil operários ocupavam nos Estados Unidos menos de 18% da totalidade dos operários industriais, enquanto na Rússia a proporção era de 41%. Este fato não confirma a concepção trivial do atraso econômico da Rússia. Mas, por outro lado, também não nega o atraso geral. As duas concepções completam-se dialeticamente. A estrutura de classe do país também apresentava o mesmo caráter contraditório. O capital financeiro da Europa industrializava a economia russa num ritmo acelerado. A burguesia industrial logo adquiria o caráter do grande capitalismo, inimigo do povo. Além do mais, os acionistas estrangeiros viviam fora do país, enquanto, por outro lado, os operários eram autenticamente russos. Uma burguesia russa numericamente débil, que não possuía nenhuma raiz nacional, defrontava-se desta forma com um proletariado relativamente forte e com rijas e profundas raízes no povo. Para o caráter revolucionário do proletariado contribuiu o fato de que a Rússia, precisamente como país atrasado e forçado a abrigar os adversários, não chegou a elaborar um conservadorismo social e político próprio. Como a nação mais conservadora da Europa e ainda do mundo inteiro, o mais velho país capitalista, a Inglaterra, dá-me a razão. Seria possível considerar a Rússia como um país desprovido de conservadorismo. O proletariado russo, jovem, resoluto, não constituía, contudo, mais que uma pequena minoria da nação. As reservas de sua potência revolucionária encontravam-se fora de seu próprio seio: no campesinato, que vivia numa semisservidão, e nas nacionalidades oprimidas.
A questão agrária formava a base da revolução. A antiga servidão, que mantinha a autocracia, resultava duplamente insuportável nas condições da nova exploração capitalista. A comunidade agrária ocupava cerca de 140 milhões de deciatinas (medida agrária correspondente a 1,0925 hectare). A 30 mil grandes proprietários latifundiários, cada um possuindo em média mais de 2.000 deciatinas, correspondia um total de 70 milhões de deciatinas, isto é, tanto quanto a 10 milhões de famílias camponesas, ou seja, 50 milhões de seres. Esta estatística da terra constituía um programa acabado de insurreição camponesa. Um nobre, Boborkin, escrevia em 1917 ao fidalgo Rodzianko, presidente da última Duma do Estado: “Eu sou um proprietário latifundiário e não me ocorre pensar, nem por um momento, que tenha de perder minha terra, muito menos para um fim inacreditável: fazer uma experiência socialista”. Mas as revoluções sempre têm como objetivo a mesma tarefa: realizar o que não entra na cabeça das classes dominantes.
No outono de 1917, quase todo o país era um vasto campo de levantes camponeses. De 621 distritos da velha Rússia, 482, isto é, 77% estavam conflagrados pelo movimento. O resplendor do incêndio do campo iluminava a sublevação nas cidades. Porém — podereis objetar — a guerra camponesa contra os latifundiários é um dos elementos clássicos da revolução burguesa, e não da revolução proletária. Eu respondo: completamente justo. Foi assim no passado. Entretanto, a impotência do capitalismo para viver em um país atrasado revela-se no fato de que, na Rússia, a sublevação camponesa não empurrou para frente a burguesia, mas, pelo contrário, colocou-a no campo da reação. Ao campesinato, para não fracassar, não lhe restava outro caminho senão a aliança com o proletariado industrial. Esta ligação revolucionária das duas classes oprimidas foi prevista genialmente por Lenin e preparada há muito tempo. Se a burguesia pudesse resolver, francamente, a questão, seguramente o proletariado não teria conquistado o poder em 1917. Chegando demasiadamente tarde, mergulhada precocemente na decrepitude, a burguesia russa, egoísta e covarde, não teve a ousadia de levantar a mão contra a propriedade feudal. E assim deixou o poder ao proletariado e, ao mesmo tempo, o direito de dispor da sorte da sociedade burguesa. Para que o Estado Soviético se transformasse em realidade, era sobretudo necessária a ação combinada desses fatores de natureza histórica distinta: a guerra camponesa, isto é, um movimento que é característico da aurora do desenvolvimento burguês, e a sublevação proletária, que anuncia o crepúsculo da sociedade burguesa. Aí reside o caráter combinado da revolução russa. Bastava que o urso camponês se levantasse sobre as patas traseiras para mostrar a sua fúria terrível. Mas o urso camponês carece da capacidade para dar à sua revolta uma expressão consciente: tem sempre a necessidade de um guia. Pela primeira vez na história do movimento social, o campesinato sublevado encontrou um dirigente leal no proletariado. Quatro milhões de operários da indústria e dos transportes lideraram cem milhões de camponeses. Tal foi a relação natural e inevitável entre o proletariado e a classe camponesa na revolução.
A segunda reserva revolucionária do proletariado era constituída pelas nacionalidades oprimidas, integradas, ainda assim, por camponeses na sua maioria. O caráter extensivo do desenvolvimento do Estado, que se esparrama do centro de Moscou até a periferia, vai intimamente ligado ao atraso histórico do país. Ao Leste, submete as populações mais atrasadas ainda, para melhor afogar, com seu apoio, as nacionalidades mais desenvolvidas do Oeste. Aos setenta milhões de grãos-russos, que formam a massa principal da população, somam-se, assim, noventa milhões de “alógenos”. Formou-se assim o Império, em cuja composição a nação dominante possuía somente 43% da população, enquanto os outros 57% era uma mescla de nacionalidades, culturas e regimes distintos. A opressão nacional era, na Rússia, incomparavelmente mais brutal que nos Estados vizinhos, ultrapassando, para dizer a verdade, não só os que estavam do outro lado da fronteira ocidental, como também da oriental. Tal estado de coisas conferia ao problema nacional uma enorme força explosiva. A burguesia liberal russa não queria, nem na questão nacional, nem na questão agrária, ir além de certas reformas para atenuar o regime de opressão e violência. Os governos “democratas” de Miliukov e de Kerensky, que exprimiam os interesses da burguesia grã-russa, dedicaram-se, no curso dos oito meses de sua existência, a ensinar às nacionalidades oprimidas a seguinte lição: não obtereis o que desejais até que não o arranqueis pela força. Há muito tempo, Lenin já considerava a inevitabilidade do desenvolvimento do movimento nacional centrífugo. O Partido Bolchevique lutou obstinadamente, durante anos, pelo direito de autodeterminação das nacionalidades, isto é, pelo direito à completa separação estatal. Foi precisamente por causa desta exata posição na questão nacional que o proletariado russo pôde ganhar, pouco a pouco, a confiança das populações oprimidas. O movimento de libertação nacional e o movimento camponês voltaram-se, forçosamente, contra a democracia oficial, fortaleceram o proletariado e lançaram-se na correnteza da insurreição de outubro.
Levanta-se assim, gradativamente, o véu do enigma da insurreição proletária num país historicamente atrasado. Muito tempo antes dos acontecimentos, os revolucionários marxistas previram a marcha da revolução e a função histórica do jovem proletariado russo. Permitam-me aqui reproduzir um extrato de minha própria obra sobre a revolução de 1905: “Num país economicamente atrasado, o proletariado pode chegar ao poder antes que num país adiantado... A revolução russa cria condições mediante as quais o poder pode passar (com a vitória da revolução deve passar) ao proletariado antes que a política do liberalismo burguês tenha possibilidade de revelar seu gênio estadista... O destino dos interesses revolucionários mais elementares dos camponeses está fortemente ligado ao destino de toda a revolução, ao destino do proletariado. Uma vez chegado ao poder, o proletariado aparecerá aos camponeses como libertador de sua classe. O proletariado entra no governo como representante revolucionário da nação, como condutor reconhecido do povo na luta contra o absolutismo e a barbárie da servidão... O regime proletário deverá desde o princípio pronunciar-se sobre a questão agrária, que está ligada à sorte do avanço das massas populares da Rússia.”
Evoquei esta citação como testemunha de que a teoria da Revolução de Outubro, apresentada hoje por mim, não é uma improvisação rápida, contraída a posteriori, sob a pressão dos acontecimentos. Não. Pelo contrário. Foi formulada sob a forma de prognóstico político muito antes da Revolução de Outubro. Convireis que a teoria em geral não tem mais valor senão na medida em que ajuda a prever o curso do desenvolvimento e influencia os seus objetivos. Nisto mesmo consiste, falando em termos gerais, a importância inestimável do marxismo como arma de orientação social e histórica. Lamento que os estreitos limites desta exposição me impeçam de desenvolver o texto citado de maneira mais ampla e, por isso, terei que me conformar com um curto resumo de tudo o que escrevi em 1905:
“Em relação às suas tarefas imediatas, a revolução russa é uma revolução burguesa. No entanto, a burguesia russa é contrarrevolucionária. Por conseguinte, a vitória da revolução só é possível como vitória do proletariado. O proletariado vitorioso não se deterá no programa da democracia burguesa e passará imediatamente ao programa do socialismo. A revolução russa será a primeira etapa da revolução socialista mundial.”
Tal era a teoria da revolução permanente, elaborada por mim em 1905 e, mais tarde, exposta à crítica mais severa sob a alcunha de “trotskismo”. Isto não é mais que uma parte dessa teoria. A outra parte, agora particularmente atual, afirmava:
“As forças de produção atuais há muito ultrapassaram as barreiras nacionais. A sociedade socialista é irrealizável nos limites nacionais. Por mais importantes que sejam os êxitos econômicos de um Estado operário isolado, o programa do ‘socialismo num só país’ é uma utopia pequeno-burguesa. Só uma federação europeia e, depois, mundial de repúblicas socialistas pode abrir o caminho a uma sociedade socialista harmônica.”
Hoje, depois da prova dos acontecimentos, tenho menos razão do que nunca para ratificar essa teoria.
Depois de tudo que disse, merece que se leve em conta o escritor fascista Malaparte? O teórico que me atribui uma tática independente da estratégia e resultante de certas técnicas, aplicáveis em todo momento? Tais receitas fornecidas pelo infeliz teórico do golpe de Estado permitem distingui-lo facilmente do prático vitorioso do golpe de Estado. E ninguém correrá o risco de confundir Malaparte com Bonaparte.
Sem a insurreição armada de 25 de outubro de 1917 (7 de novembro, segundo o calendário atual), o Estado Soviético não existiria. Mas a insurreição não caiu do céu. Para que a Revolução de Outubro fosse vitoriosa era necessária uma série de premissas históricas: 1) A podridão das velhas classes dominantes, da nobreza, da monarquia, da burocracia; 2) A debilidade política da burguesia, que não tinha nenhuma raiz nas massas populares; 3) O caráter revolucionário da questão agrária; 4) O caráter revolucionário do problema das nacionalidades oprimidas; 5) O peso social do proletariado. A estas premissas orgânicas é preciso juntar condições conjunturais de excepcional importância: 6) A revolução de 1905 foi uma grande lição ou, segundo Lenin, “um ensaio geral” da revolução de 1917. Os soviets, como forma de organização insubstituível de frente única proletária na revolução, apareceram pela primeira vez em 1905; 7) A guerra imperialista aguçou todas as contradições, arrancou as massas atrasadas do seu estado de imobilidade, preparando-as para o caráter grandioso da catástrofe.
Mas todas essas condições, suficientes para que irrompesse a revolução eram, porém, insuficientes para assegurar a vitória do proletariado. Faltava uma oitava condição: o Partido Bolchevique. Se coloco esta condição em último lugar é porque corresponde à sequência lógica e não porque atribuo ao partido o lugar de menor importância. Não. Muito longe disso. A burguesia liberal pode tomar o poder, e o fez muitas vezes, como resultado de lutas nas quais não havia participado: para isto possui instrumentos magnificamente desenvolvidos. As massas trabalhadoras encontram-se numa outra situação. Acostumaram-se a ceder o poder, não a tomá-lo. Trabalham pacientemente, esperam, perdem a paciência, sublevam-se, combatem, morrem, dão a vitória a outros, são traídas, caem no desalento, submetem-se, voltam a trabalhar. Assim é a história das massas populares sob todos os regimes. Para tomar com segurança e firmeza o poder, o proletariado tem necessidade de um partido superior a todos os demais na clareza do pensamento e na decisão revolucionária. O Partido Bolchevique, designado com frequência, e com razão, como o partido mais revolucionário da história da humanidade, era a condensação viva da nova história da Rússia, de tudo o que nela havia de dinâmico. Havia muito tempo que se considerava o desaparecimento da monarquia como a condição indispensável para o desenvolvimento da economia e da cultura. Faltavam as forças para levar adiante esta tarefa. À burguesia horrorizava a ideia da revolução. Os intelectuais tentaram conduzir o campesinato sobre os ombros. Incapaz de generalizar suas próprias penas e objetivos, o mujique não deu resposta ao apelo dos intelectuais. A intelligentsia armou-se de dinamite. Toda uma geração se consumiu nesta luta. A 1º de março de 1887, Alexandre Ulianov levou a cabo o último dos grandes atentados terroristas. A tentativa contra Alexandre III fracassou. Ulianov e os demais participantes foram enforcados. A tentativa de substituir a classe revolucionária por uma preparação química naufragou. A inteligência mais heroica não é nada sem as massas. Sob a impressão imediata destes fatos e de suas conclusões, cresceu e formou-se o mais jovem dos irmãos Ulianov, Vladimir, o futuro Lenin. A figura mais grandiosa da história russa. Desde o princípio, em sua juventude, colocou-se sob o terreno do marxismo e voltou seu olhar para o proletariado. Sem perder um instante de vista a aldeia, orientou-se para o campesinato, através dos operários. Herdando de seus precursores revolucionários a resolução, a capacidade de sacrifício, a disposição de chegar até o fim, Lenin converteu-se, nos anos da juventude, no educador da nova geração dos intelectuais e dos operários avançados. Nas greves e nas lutas de rua, nas prisões e no exílio, os operários adquiriram a têmpera necessária. A lanterna do marxismo ser-lhe-á necessária para iluminar seu caminho histórico na escuridão da autocracia.
O partido revolucionário não pode desempenhar outro papel senão o de parteiro que se vê obrigado a recorrer à operação cesariana. Poderiam objetar-me: suas considerações gerais podem explicar, suficientemente, por que razão a velha Rússia (este país onde o capitalismo atrasado, com uma classe camponesa miserável, estava coroado por uma nobreza parasitária e, além disso, por uma monarquia putrefata) teria que naufragar. Mas na imagem da corrente e do elo mais fraco falta ainda a chave do enigma: como, num país atrasado, poderia triunfar a revolução socialista? Porque a história conhece muitos exemplos de decadência de países e de culturas que, após a derrocada simultânea das velhas classes, não puderam achar nenhuma forma progressiva para ressurgir. A derrocada da velha Rússia deveria, ao que tudo indica, transformar o país em uma colônia capitalista e não em um Estado socialista. Esta objeção é muito interessante e nos leva diretamente ao coração do problema. Mas é viciosa. Eu diria: desprovida de proporção interna. De um lado, decorre de uma concepção exagerada quanto ao atraso da Rússia. De outro, de uma falsa concepção teórica no que diz respeito ao fenômeno do atraso em geral.
Os seres vivos — naturalmente, entre eles, o homem — atravessam, com relação à idade, estágios de desenvolvimento semelhantes. Numa criança normal de cinco anos, encontra-se certa correspondência entre o peso, a altura e os órgãos internos. Mas isto não ocorre com a consciência humana. Em oposição à anatomia e à fisiologia, a psicologia, tanto a do indivíduo como a da coletividade, distingue-se por uma extraordinária capacidade de assimilação, flexibilidade e elasticidade: reside aí também a vantagem aristocrática do homem sobre seu parente zoológico mais próximo da espécie dos macacos. A consciência, susceptível de assimilar, confere — como condição necessária ao progresso histórico — aos “organismos” chamados sociais, ao contrário dos organismos reais, isto é, biológicos, uma extraordinária variabilidade da estrutura interna. No desenvolvimento das nações e dos Estados, dos capitalistas em particular, não existe nem similitude nem uniformidade. Diferentes graus de cultura, até os polos opostos, aproximam-se e combinam-se, com muita frequência, na vida de um país. Não esqueçamos, caros ouvintes, que o atraso histórico é uma noção relativa. Se existem países atrasados e avançados, há também uma ação recíproca entre eles. Há a opressão dos países avançados sobre os retardatários, bem como a necessidade para os países atrasados de alcançar aqueles mais adiantados, adquirir-lhes a técnica, a ciência etc. Assim surgiu um tipo combinado de desenvolvimento: as características mais atrasadas se ligam à última palavra da técnica e do pensamento mundiais. Enfim, os países historicamente atrasados são por vezes obrigados a ultrapassar os demais. A elasticidade da consciência coletiva confere a possibilidade de conseguir, em certas condições, sobre a arena social, o resultado que em psicologia individual se chama “compensação”. Pode-se afirmar, neste sentido, que a Revolução de Outubro foi para os povos da Rússia um meio heroico de superar sua própria inferioridade econômica e cultural.
Passemos sobre essas generalizações histórico-políticas, que talvez sejam um tanto abstratas, para enfocar a mesma questão de modo concreto, isto é, através de fatos econômicos vivos. O atraso da Rússia do século XX se expressa, mais claramente, da seguinte maneira: a indústria ocupa no país um lugar mínimo, em comparação ao campo. Isto significa, no conjunto, uma baixa produtividade do trabalho nacional. Basta dizer que, às vésperas da guerra, quando a Rússia czarista alcançara o auge de sua prosperidade, a renda nacional era de oito a dez vezes inferior a dos Estados Unidos. Isto expressa numericamente a “amplitude” do atraso, se é que podemos usar a palavra “amplitude” no que se refere ao atraso. Ao mesmo tempo, a lei do desenvolvimento combinado manifesta-se, a cada passo, no domínio econômico, tanto nos fenômenos simples como nos complexos. Quase sem estradas nacionais, a Rússia viu-se obrigada a construir ferrovias. Sem haver passado pelo artesanato e pela manufatura europeias, a Rússia saltou diretamente para a produção mecanizada. Saltar as etapas intermediárias, este é o caminho dos países atrasados. Enquanto a economia camponesa permanecia, frequentemente, ao nível do século XVII, a indústria da Rússia, se não na capacidade, pelo menos em seu tipo, encontrava-se no mesmo nível dos países avançados e até superava-os em muitos aspectos.
Assinale-se que as empresas gigantes com mais de mil operários ocupavam nos Estados Unidos menos de 18% da totalidade dos operários industriais, enquanto na Rússia a proporção era de 41%. Este fato não confirma a concepção trivial do atraso econômico da Rússia. Mas, por outro lado, também não nega o atraso geral. As duas concepções completam-se dialeticamente. A estrutura de classe do país também apresentava o mesmo caráter contraditório. O capital financeiro da Europa industrializava a economia russa num ritmo acelerado. A burguesia industrial logo adquiria o caráter do grande capitalismo, inimigo do povo. Além do mais, os acionistas estrangeiros viviam fora do país, enquanto, por outro lado, os operários eram autenticamente russos. Uma burguesia russa numericamente débil, que não possuía nenhuma raiz nacional, defrontava-se desta forma com um proletariado relativamente forte e com rijas e profundas raízes no povo. Para o caráter revolucionário do proletariado contribuiu o fato de que a Rússia, precisamente como país atrasado e forçado a abrigar os adversários, não chegou a elaborar um conservadorismo social e político próprio. Como a nação mais conservadora da Europa e ainda do mundo inteiro, o mais velho país capitalista, a Inglaterra, dá-me a razão. Seria possível considerar a Rússia como um país desprovido de conservadorismo. O proletariado russo, jovem, resoluto, não constituía, contudo, mais que uma pequena minoria da nação. As reservas de sua potência revolucionária encontravam-se fora de seu próprio seio: no campesinato, que vivia numa semisservidão, e nas nacionalidades oprimidas.
A questão agrária formava a base da revolução. A antiga servidão, que mantinha a autocracia, resultava duplamente insuportável nas condições da nova exploração capitalista. A comunidade agrária ocupava cerca de 140 milhões de deciatinas (medida agrária correspondente a 1,0925 hectare). A 30 mil grandes proprietários latifundiários, cada um possuindo em média mais de 2.000 deciatinas, correspondia um total de 70 milhões de deciatinas, isto é, tanto quanto a 10 milhões de famílias camponesas, ou seja, 50 milhões de seres. Esta estatística da terra constituía um programa acabado de insurreição camponesa. Um nobre, Boborkin, escrevia em 1917 ao fidalgo Rodzianko, presidente da última Duma do Estado: “Eu sou um proprietário latifundiário e não me ocorre pensar, nem por um momento, que tenha de perder minha terra, muito menos para um fim inacreditável: fazer uma experiência socialista”. Mas as revoluções sempre têm como objetivo a mesma tarefa: realizar o que não entra na cabeça das classes dominantes.
No outono de 1917, quase todo o país era um vasto campo de levantes camponeses. De 621 distritos da velha Rússia, 482, isto é, 77% estavam conflagrados pelo movimento. O resplendor do incêndio do campo iluminava a sublevação nas cidades. Porém — podereis objetar — a guerra camponesa contra os latifundiários é um dos elementos clássicos da revolução burguesa, e não da revolução proletária. Eu respondo: completamente justo. Foi assim no passado. Entretanto, a impotência do capitalismo para viver em um país atrasado revela-se no fato de que, na Rússia, a sublevação camponesa não empurrou para frente a burguesia, mas, pelo contrário, colocou-a no campo da reação. Ao campesinato, para não fracassar, não lhe restava outro caminho senão a aliança com o proletariado industrial. Esta ligação revolucionária das duas classes oprimidas foi prevista genialmente por Lenin e preparada há muito tempo. Se a burguesia pudesse resolver, francamente, a questão, seguramente o proletariado não teria conquistado o poder em 1917. Chegando demasiadamente tarde, mergulhada precocemente na decrepitude, a burguesia russa, egoísta e covarde, não teve a ousadia de levantar a mão contra a propriedade feudal. E assim deixou o poder ao proletariado e, ao mesmo tempo, o direito de dispor da sorte da sociedade burguesa. Para que o Estado Soviético se transformasse em realidade, era sobretudo necessária a ação combinada desses fatores de natureza histórica distinta: a guerra camponesa, isto é, um movimento que é característico da aurora do desenvolvimento burguês, e a sublevação proletária, que anuncia o crepúsculo da sociedade burguesa. Aí reside o caráter combinado da revolução russa. Bastava que o urso camponês se levantasse sobre as patas traseiras para mostrar a sua fúria terrível. Mas o urso camponês carece da capacidade para dar à sua revolta uma expressão consciente: tem sempre a necessidade de um guia. Pela primeira vez na história do movimento social, o campesinato sublevado encontrou um dirigente leal no proletariado. Quatro milhões de operários da indústria e dos transportes lideraram cem milhões de camponeses. Tal foi a relação natural e inevitável entre o proletariado e a classe camponesa na revolução.
A segunda reserva revolucionária do proletariado era constituída pelas nacionalidades oprimidas, integradas, ainda assim, por camponeses na sua maioria. O caráter extensivo do desenvolvimento do Estado, que se esparrama do centro de Moscou até a periferia, vai intimamente ligado ao atraso histórico do país. Ao Leste, submete as populações mais atrasadas ainda, para melhor afogar, com seu apoio, as nacionalidades mais desenvolvidas do Oeste. Aos setenta milhões de grãos-russos, que formam a massa principal da população, somam-se, assim, noventa milhões de “alógenos”. Formou-se assim o Império, em cuja composição a nação dominante possuía somente 43% da população, enquanto os outros 57% era uma mescla de nacionalidades, culturas e regimes distintos. A opressão nacional era, na Rússia, incomparavelmente mais brutal que nos Estados vizinhos, ultrapassando, para dizer a verdade, não só os que estavam do outro lado da fronteira ocidental, como também da oriental. Tal estado de coisas conferia ao problema nacional uma enorme força explosiva. A burguesia liberal russa não queria, nem na questão nacional, nem na questão agrária, ir além de certas reformas para atenuar o regime de opressão e violência. Os governos “democratas” de Miliukov e de Kerensky, que exprimiam os interesses da burguesia grã-russa, dedicaram-se, no curso dos oito meses de sua existência, a ensinar às nacionalidades oprimidas a seguinte lição: não obtereis o que desejais até que não o arranqueis pela força. Há muito tempo, Lenin já considerava a inevitabilidade do desenvolvimento do movimento nacional centrífugo. O Partido Bolchevique lutou obstinadamente, durante anos, pelo direito de autodeterminação das nacionalidades, isto é, pelo direito à completa separação estatal. Foi precisamente por causa desta exata posição na questão nacional que o proletariado russo pôde ganhar, pouco a pouco, a confiança das populações oprimidas. O movimento de libertação nacional e o movimento camponês voltaram-se, forçosamente, contra a democracia oficial, fortaleceram o proletariado e lançaram-se na correnteza da insurreição de outubro.
Levanta-se assim, gradativamente, o véu do enigma da insurreição proletária num país historicamente atrasado. Muito tempo antes dos acontecimentos, os revolucionários marxistas previram a marcha da revolução e a função histórica do jovem proletariado russo. Permitam-me aqui reproduzir um extrato de minha própria obra sobre a revolução de 1905: “Num país economicamente atrasado, o proletariado pode chegar ao poder antes que num país adiantado... A revolução russa cria condições mediante as quais o poder pode passar (com a vitória da revolução deve passar) ao proletariado antes que a política do liberalismo burguês tenha possibilidade de revelar seu gênio estadista... O destino dos interesses revolucionários mais elementares dos camponeses está fortemente ligado ao destino de toda a revolução, ao destino do proletariado. Uma vez chegado ao poder, o proletariado aparecerá aos camponeses como libertador de sua classe. O proletariado entra no governo como representante revolucionário da nação, como condutor reconhecido do povo na luta contra o absolutismo e a barbárie da servidão... O regime proletário deverá desde o princípio pronunciar-se sobre a questão agrária, que está ligada à sorte do avanço das massas populares da Rússia.”
Evoquei esta citação como testemunha de que a teoria da Revolução de Outubro, apresentada hoje por mim, não é uma improvisação rápida, contraída a posteriori, sob a pressão dos acontecimentos. Não. Pelo contrário. Foi formulada sob a forma de prognóstico político muito antes da Revolução de Outubro. Convireis que a teoria em geral não tem mais valor senão na medida em que ajuda a prever o curso do desenvolvimento e influencia os seus objetivos. Nisto mesmo consiste, falando em termos gerais, a importância inestimável do marxismo como arma de orientação social e histórica. Lamento que os estreitos limites desta exposição me impeçam de desenvolver o texto citado de maneira mais ampla e, por isso, terei que me conformar com um curto resumo de tudo o que escrevi em 1905:
“Em relação às suas tarefas imediatas, a revolução russa é uma revolução burguesa. No entanto, a burguesia russa é contrarrevolucionária. Por conseguinte, a vitória da revolução só é possível como vitória do proletariado. O proletariado vitorioso não se deterá no programa da democracia burguesa e passará imediatamente ao programa do socialismo. A revolução russa será a primeira etapa da revolução socialista mundial.”
Tal era a teoria da revolução permanente, elaborada por mim em 1905 e, mais tarde, exposta à crítica mais severa sob a alcunha de “trotskismo”. Isto não é mais que uma parte dessa teoria. A outra parte, agora particularmente atual, afirmava:
“As forças de produção atuais há muito ultrapassaram as barreiras nacionais. A sociedade socialista é irrealizável nos limites nacionais. Por mais importantes que sejam os êxitos econômicos de um Estado operário isolado, o programa do ‘socialismo num só país’ é uma utopia pequeno-burguesa. Só uma federação europeia e, depois, mundial de repúblicas socialistas pode abrir o caminho a uma sociedade socialista harmônica.”
Hoje, depois da prova dos acontecimentos, tenho menos razão do que nunca para ratificar essa teoria.
Depois de tudo que disse, merece que se leve em conta o escritor fascista Malaparte? O teórico que me atribui uma tática independente da estratégia e resultante de certas técnicas, aplicáveis em todo momento? Tais receitas fornecidas pelo infeliz teórico do golpe de Estado permitem distingui-lo facilmente do prático vitorioso do golpe de Estado. E ninguém correrá o risco de confundir Malaparte com Bonaparte.
Sem a insurreição armada de 25 de outubro de 1917 (7 de novembro, segundo o calendário atual), o Estado Soviético não existiria. Mas a insurreição não caiu do céu. Para que a Revolução de Outubro fosse vitoriosa era necessária uma série de premissas históricas: 1) A podridão das velhas classes dominantes, da nobreza, da monarquia, da burocracia; 2) A debilidade política da burguesia, que não tinha nenhuma raiz nas massas populares; 3) O caráter revolucionário da questão agrária; 4) O caráter revolucionário do problema das nacionalidades oprimidas; 5) O peso social do proletariado. A estas premissas orgânicas é preciso juntar condições conjunturais de excepcional importância: 6) A revolução de 1905 foi uma grande lição ou, segundo Lenin, “um ensaio geral” da revolução de 1917. Os soviets, como forma de organização insubstituível de frente única proletária na revolução, apareceram pela primeira vez em 1905; 7) A guerra imperialista aguçou todas as contradições, arrancou as massas atrasadas do seu estado de imobilidade, preparando-as para o caráter grandioso da catástrofe.
Mas todas essas condições, suficientes para que irrompesse a revolução eram, porém, insuficientes para assegurar a vitória do proletariado. Faltava uma oitava condição: o Partido Bolchevique. Se coloco esta condição em último lugar é porque corresponde à sequência lógica e não porque atribuo ao partido o lugar de menor importância. Não. Muito longe disso. A burguesia liberal pode tomar o poder, e o fez muitas vezes, como resultado de lutas nas quais não havia participado: para isto possui instrumentos magnificamente desenvolvidos. As massas trabalhadoras encontram-se numa outra situação. Acostumaram-se a ceder o poder, não a tomá-lo. Trabalham pacientemente, esperam, perdem a paciência, sublevam-se, combatem, morrem, dão a vitória a outros, são traídas, caem no desalento, submetem-se, voltam a trabalhar. Assim é a história das massas populares sob todos os regimes. Para tomar com segurança e firmeza o poder, o proletariado tem necessidade de um partido superior a todos os demais na clareza do pensamento e na decisão revolucionária. O Partido Bolchevique, designado com frequência, e com razão, como o partido mais revolucionário da história da humanidade, era a condensação viva da nova história da Rússia, de tudo o que nela havia de dinâmico. Havia muito tempo que se considerava o desaparecimento da monarquia como a condição indispensável para o desenvolvimento da economia e da cultura. Faltavam as forças para levar adiante esta tarefa. À burguesia horrorizava a ideia da revolução. Os intelectuais tentaram conduzir o campesinato sobre os ombros. Incapaz de generalizar suas próprias penas e objetivos, o mujique não deu resposta ao apelo dos intelectuais. A intelligentsia armou-se de dinamite. Toda uma geração se consumiu nesta luta. A 1º de março de 1887, Alexandre Ulianov levou a cabo o último dos grandes atentados terroristas. A tentativa contra Alexandre III fracassou. Ulianov e os demais participantes foram enforcados. A tentativa de substituir a classe revolucionária por uma preparação química naufragou. A inteligência mais heroica não é nada sem as massas. Sob a impressão imediata destes fatos e de suas conclusões, cresceu e formou-se o mais jovem dos irmãos Ulianov, Vladimir, o futuro Lenin. A figura mais grandiosa da história russa. Desde o princípio, em sua juventude, colocou-se sob o terreno do marxismo e voltou seu olhar para o proletariado. Sem perder um instante de vista a aldeia, orientou-se para o campesinato, através dos operários. Herdando de seus precursores revolucionários a resolução, a capacidade de sacrifício, a disposição de chegar até o fim, Lenin converteu-se, nos anos da juventude, no educador da nova geração dos intelectuais e dos operários avançados. Nas greves e nas lutas de rua, nas prisões e no exílio, os operários adquiriram a têmpera necessária. A lanterna do marxismo ser-lhe-á necessária para iluminar seu caminho histórico na escuridão da autocracia.
Em 1883, nasceu na emigração o primeiro grupo marxista. Em 1898, numa Assembleia clandestina, proclamou-se a criação do Partido Operário Social-Democrata Russo. Naquela época, todos nos chamávamos social-democratas. Em 1903, ocorreu a cisão entre bolcheviques e mencheviques. Em 1912, a fração bolchevique transformou-se, definitivamente, em partido autônomo. Este partido ensinou a reconhecer a mecânica das classes sociais nas lutas, nos acontecimentos grandiosos, durante 12 anos (de 1905 a 1917). Educou quadros, militantes aptos, tanto para a iniciativa como para a obediência. A disciplina da ação revolucionária apoiava-se na unidade da doutrina, nas tradições de lutas comuns e na confiança numa direção provada. Tal era o partido em 1917. Enquanto a “opinião pública” oficial e as toneladas de papel da imprensa não lhe concediam importância, o partido bolchevique orientava-se segundo o curso das lutas de massas. A formidável alavanca que esse partido manejava firmemente introduzia-se nas fábricas e nos regimentos e as massas camponesas dirigiam cada vez mais e com mais insistência suas atenções para ele. Se se entende por nação não as camadas privilegiadas, mas, sim, a maioria do povo, isto é, os operários e os camponeses, há de se reconhecer que o bolchevismo se transformou, no decorrer de 1917, no único partido verdadeiramente nacional.
Em setembro de 1917, Lenin, obrigado a viver na clandestinidade, deu o sinal: “A crise está madura, aproxima-se a hora da insurreição”. Estava certo. As classes dominantes caíram impotentes diante dos problemas da guerra, do campo e da libertação nacional. A burguesia perdeu definitivamente a cabeça. Os partidos democratas, os mencheviques e os socialistas-revolucionários dissiparam o último resto da confiança das massas, sustentando a guerra imperialista por sua política de compromissos e de concessões aos proprietários burgueses e feudais. O exército, abalado na sua consciência, negava-se a lutar pelos objetivos do imperialismo, que lhe eram estranhos. Sem atender às exortações “democráticas”, os camponeses expulsaram os latifundiários de seus domínios. A periferia nacional do império, oprimida, lançou-se contra a burocracia de Petrogrado. Nos mais importantes Conselhos de operários e soldados os bolcheviques dominavam. Operários e soldados exigiam fatos. O abscesso estava maduro. Só faltava um corte de bisturi.
A insurreição só se tornou possível nessas condições sociais e políticas. E assim aconteceu inelutavelmente. Mas não se pode brincar com a insurreição. Desgraçado do cirurgião que utiliza o bisturi com negligência. A insurreição é uma arte: tem as suas leis e as suas próprias regras.
O partido realizou a insurreição de Outubro com um cálculo frio e uma resolução ardente. Graças a isto pôde triunfar quase sem vítimas. Por meio dos soviets vitoriosos, os bolcheviques puseram-se à frente do país que compreende a sexta parte da superfície terrestre. Suponho que a maioria dos meus ouvintes de hoje ainda não se ocupavam com a política em 1917. Tanto melhor. A jovem geração tem diante de si muitas coisas interessantes, mas não fáceis. Por outro lado, os representantes da velha geração, nesta sala, recordarão muito bem como se recebeu a tomada do poder pelos bolcheviques: como um equívoco, uma curiosidade, um escândalo, ou ainda, um pesadelo, que se desvaneceria ao primeiro clarão da alvorada. Os bolcheviques manteriam o poder apenas por vinte e quatro horas, uma semana, um mês, um ano. Era preciso ampliar cada vez mais o prazo. Os amos do mundo armavam-se contra o primeiro Estado proletário: desencadeamento da guerra civil, novas e novas intervenções, bloqueio. Assim passou um ano. Passou outro. E a historia já tem que contar quinze anos de existência do poder soviético. Sim, diria algum adversário: a aventura de Outubro mostrou-se muito mais sólida do que pensávamos. Quiçá não fosse de todo uma “aventura”. E, não obstante, a questão conserva toda a sua força: o que se obteve a este preço tão elevado? Pode-se dizer que se realizaram as belezas anunciadas pelos bolcheviques antes da insurreição? Antes de responder ao suposto adversário, observemos que esta pergunta não é nova. Ao contrário, remonta aos primeiros passos da Revolução de Outubro, depois do nascimento da República dos Soviets.
O jornalista francês Claude Anet, que estava em Petrogrado durante a revolução, escrevia, a 27 de outubro de 1917: “Os maximalistas — era assim que os franceses chamavam os bolcheviques naquela época — tomaram o poder e amanheceu o grande dia. Enfim, digo-me, vou ver como se realiza o ‘Éden Socialista’ que eles nos prometem há tantos anos... Admirável aventura! Posição privilegiada!”, etc. Que autêntico ódio se ocultava por trás dessas saudações irônicas! No dia seguinte à ocupação do Palácio de Inverno, o jornalista francês julgava-se com o direito de exigir um cartão de entrada no Paraíso. Quinze anos transcorreram desde a insurreição. Com uma falta de cerimônia ainda maior, os adversários manifestavam sua alegria maligna ao comprovar que, ainda hoje, o país dos soviets se assemelha muito pouco ao reino do bem-estar geral. Por que, então, a revolução? Por que suas vítimas?
Caros ouvintes: creio que estou entre aqueles que melhor conhecem as contradições, as dificuldades, as faltas e as insuficiências do regime soviético. Pessoalmente, jamais tratei de dissimulá-las, nem oralmente nem por escrito. Sempre acreditei — e sigo acreditando — que a política revolucionária, ao contrário da política conservadora, não pode se basear no engodo. “Exprimir o que é” — tal deve ser o princípio essencial do Estado operário. Não obstante, é necessário ter perspectiva, tanto na crítica como na atividade criadora. O subjetivismo é um péssimo conselheiro, sobretudo quando se trata de grandes questões. Os prazos devem estar em consonância com a magnitude das tarefas, e não com os caprichos individuais. Quinze anos! Que significam para uma vida? Entretanto, numerosos são aqueles da nossa geração que foram enterrados; e, nos sobreviventes, multiplicam-se os cabelos brancos. Mas esses mesmos quinze anos não representam mais que um piscar de olhos na vida de um povo. Nada mais do que um minuto no relógio da História!
O capitalismo precisou de séculos para afirmar-se na luta contra a Idade Média, para elevar a ciência e a técnica, para construir vias férreas, para estender fios elétricos. E depois? Depois lançou a humanidade no inferno das guerras e das crises. Ao socialismo, seus adversários, isto é, os partidários do capitalismo, não concedem mais do que quinze anos para instaurar sobre a terra o paraíso com todo o conforto moderno. Não. Não assumimos tal obrigação. Não estabelecemos tais prazos. Devem-se medir os processos das grandes transformações com uma escala adequada. Não sei se a sociedade socialista se assemelharia ao paraíso bíblico. Duvido muito. Na União Soviética não existe ainda o socialismo. E sim um estado de transição, cheio de contradições, carregando a pesada herança do passado, sofrendo a pressão inimiga dos Estados capitalistas. A Revolução de Outubro proclamou o princípio da nova sociedade. A República dos Soviets apenas mostrou a primeira etapa de sua realização. A primeira lâmpada de Edson foi muito imperfeita. Devemos saber distinguir o futuro através das faltas e dos erros da primeira edificação socialista.
E as calamidades que se abatem sobre os seres vivos? Os resultados da revolução justificam as vítimas que ela causou? Pergunta estéril e profundamente retórica! Como se o processo histórico resultasse de um balanço contábil. Com tanto mais razão, ante as dificuldades e as penas da existência humana, poder-se-ia perguntar: “Vale a pena viver para isso?”. Heine escreveu a este propósito: “E o tolo aguarda uma resposta”. As meditações melancólicas não impediram o homem de fecundar e nascer. Ainda nesta época, de uma crise mundial sem precedentes, os suicídios constituem, felizmente, uma porcentagem muito baixa. Pois os povos não têm o costume de buscar refúgio no suicídio. Aliviam-se das cargas insuportáveis pela revolução. Por outro lado, quem se indigna por causa das vítimas da revolução socialista? Quase sempre são os mesmos que preparam e glorificam as vítimas da guerra imperialista ou, pelo menos, os que se acomodaram facilmente ao conflito. Também nós poderíamos perguntar: Justifica-se a guerra? O que ela nos deu? O que nos ensinou?
Em seus onze volumes de difamação contra a grande Revolução Francesa, o historiador Hipólito Taine descreve, não sem sórdida alegria, os sofrimentos do povo francês nos anos da ditadura jacobina e nos que a ela se seguiram. Foram, sobretudo, penosos para as camadas inferiores das cidades, os plebeus que, como sans-culottes, deram à revolução o melhor de sua alma. Eles ou suas mulheres passavam noites frias nas filas para voltar no dia seguinte com as mãos vazias ao lar gelado. No décimo ano da revolução, Paris era mais pobre que antes da insurreição. Dados cuidadosamente escolhidos e artificiosamente completados servem a Taine para fundamentar seu veredictum destruidor contra a revolução: “Olhai os plebeus. Queriam ser ditadores e caíram na miséria!” É difícil imaginar um moralista mais hipócrita. Em primeiro lugar, se a revolução lançou o país na miséria, a culpa recairia antes de tudo sobre as classes dirigentes, que empurravam o povo à revolução. Em segundo lugar, a grande revolução francesa não se esgotou nas filas da fome, diante das padarias. Toda a França moderna e, sob certos aspectos, toda a civilização moderna emergiram da Revolução Francesa.
No curso da guerra civil dos Estados Unidos morreram 500 mil homens. Justificam-se essas vítimas? Do ponto de vista do dono de escravos americano e das classes dominantes da Grã-Bretanha, não. Do ponto de vista do negro e do operário britânico, completamente. E do ponto de vista do desenvolvimento da humanidade, no seu conjunto, não há a menor dúvida. Da guerra civil dos anos 60 saíram os Estados Unidos atuais, com a sua iniciativa prática e veloz, a técnica racionalizada, o auge econômico. Sobre essas conquistas do americanismo, a humanidade edificará a nova sociedade.
A Revolução de Outubro penetrou mais profundamente que todas as precedentes no âmago da sociedade, nas relações de propriedade. Prazos maiores são necessários para que se manifestem as forças criadoras da revolução em todos os domínios da vida. Mas a orientação geral é clara desde já: a República do Soviets não tem por que abaixar a cabeça nem empregar a linguagem da desculpa diante dos seus acusadores capitalistas. Para apreciar o novo regime do ponto de vista do desenvolvimento humano, há que se focalizar, acima de tudo, esta questão: de que maneira se exterioriza o progresso social e como se pode medi-lo? O critério mais objetivo, mais profundo e mais indiscutível é o crescimento da produtividade do trabalho social. A experiência da Revolução de Outubro, sob este ângulo, fornece-nos uma estimativa. Pela primeira vez na história o princípio de organização socialista demonstrou sua capacidade, fornecendo resultados de produção jamais obtidos num curto período. Em cifras globais, a curva do desenvolvimento industrial da Rússia se expressa desta forma: ponhamos para o ano de 1913, o último ano antes da guerra, o número 100. O ano 1920, fim da guerra civil, é o ponto mais baixo da indústria: registra-se apenas 25, isto é, um quarto da produção de antes da guerra. 1929 registra aproximadamente 200. 1932, 300, ou seja, o triplo do que havia nas vésperas da guerra. O quadro aparecerá ainda mais claro à luz dos índices internacionais. De 1925 a 1932, a produção industrial da Alemanha diminuiu aproximadamente uma vez e meia. Na América, aproximadamente dobrou. Na União Soviética, aumentou mais de quatro vezes. As cifras não podem ser mais eloquentes.
De maneira nenhuma pretendo negar ou dissimular os dados sombrios da economia soviética. Os resultados dos índices industriais estão extraordinariamente influenciados pelo desenvolvimento desfavorável da economia agrária, quer dizer, do domínio onde ainda não entraram os métodos socialistas, mas foi arrastado para a coletivização sem preparação suficiente, de maneira mais burocrática do que técnica ou econômica. Esta é uma grande questão, mas ultrapassa os limites da minha conferência.
As cifras apresentadas requerem ainda uma ressalva essencial: os êxitos indiscutíveis e brilhantes da industrialização soviética exigem uma verificação econômica ulterior, do ponto de vista da harmonia recíproca dos diferentes elementos da economia, de seu equilíbrio dinâmico e, por conseguinte, de sua capacidade de rendimento. Aqui são inevitáveis as grandes dificuldades e também os retrocessos. O socialismo não surge em sua forma acabada do Plano Quinquenal como Minerva da cabeça de Júpiter ou Vênus da espuma do mar. Estamos diante de décadas de trabalho obstinado, de falhas, de correções e de reconstrução. Por outro lado, não esqueçamos que a edificação socialista não pode alcançar o seu coroamento senão sobre o plano internacional.
Mesmo o mais desfavorável balanço econômico dos resultados obtidos até agora não poderia revelar outra coisa que a inexatidão dos cálculos preliminares, as falhas do plano e os erros da direção. Mas em caso algum poderia contradizer o fato estabelecido empiricamente: a possibilidade de elevar o trabalho coletivo a uma altura jamais conhecida, com a ajuda dos métodos socialistas. Esta conquista, de uma importância histórica mundial, ninguém poderá ocultar.
Depois do que disse, quase não vale a pena perder tempo para contestar as lamentações segundo as quais a Revolução de Outubro conduziu a Rússia ao ocaso da cultura. Tal é a voz das classes dominantes e dos salões inquietos. A “Cultura” aristocrático-burguesa, derrubada pela revolução proletária, não era mais que um complemento da barbárie. Tanto que foi inacessível ao povo russo, que pouco aportou ao tesouro da humanidade. Mas, também, no que concerne a esta cultura tão chorada pela emigração branca, é preciso esclarecer a questão: em que sentido foi destruída? Num só sentido: o monopólio de uma pequena minoria sobre os bens da cultura desapareceu. No que era realmente cultural permanece intacto. Os “hunos” bolcheviques não pisotearam nem as conquistas do pensamento nem as obras de arte. Pelo contrário, restauraram, cuidadosamente, os monumentos da criação humana e deram-lhes ordem exemplar. A cultura da monarquia, da nobreza e da burguesia converteu-se presentemente na cultura dos museus históricos. O povo visita com fervor esses museus, mas não vive neles. Aprende, constrói. O simples fato de que a Revolução de Outubro tenha ensinado o povo russo, aos numerosos povos da Rússia czarista, a ler e a escrever tem incomparavelmente mais valor do que toda a cultura em conserva da Rússia de outrora. A revolução russa criou a base de uma nova cultura, destinada não aos eleitos, mas a todos. As massas do mundo inteiro sentem-no: daí a sua simpatia pela União Soviética tão ardente como era antes o seu ódio contra a Rússia czarista.
Caros ouvintes: vós sabeis que a linguagem humana representa um instrumento insubstituível, não somente porque designa as coisas e os fatos, mas também porque os afirma. Descartando o acidental, o episódico, o artificial, absorve o real, condensa-o. Notai com que sensibilidade as línguas das nações civilizadas distinguiram duas épocas no desenvolvimento da Rússia. A cultura aristocrática trouxe ao mundo barbarismos tais como czar, cossaco, pogrom, nagaika. Conheceis essas palavras e sabeis seu significado. A Revolução de Outubro levou a todas as línguas do mundo palavras tais como: bolchevique, soviets, kolkhoz, Gosplan piatiletka1. Aqui a linguística prática emite seu julgamento histórico.
O significado mais profundo da revolução — e que mais dificilmente se submeteu a uma nova prova imediata — consiste em que forma e tempera o caráter do povo. A imagem do povo russo como um povo lento, passivo, melancólico, místico, está há muito difundida, e isto não é casual. Tem suas raízes no passado. Mas ainda não se levaram suficientemente em consideração, no Ocidente, as modificações profundas que a Revolução de Outubro introduziu no caráter do povo russo. E podia esperar-se outra coisa? Todo homem que tem uma experiência de vida pode despertar em sua memória a imagem de um adolescente qualquer, dele conhecido, que — impressionável, lírico, sentimental, enfim — se transforma, mais tarde, de um só golpe, sob a ação de forte choque moral, num homem forte, bem temperado até o ponto de ficar completamente desconhecido. No desenvolvimento de toda uma nação, a revolução realiza transformações análogas. A insurreição de fevereiro contra a autocracia, a luta contra a nobreza, contra a guerra imperialista pela paz, pela terra, pela igualdade nacional, a insurreição de outubro, a derrubada da burguesia e dos partidos com tendências a sustentá-la, três anos de guerra civil sobre uma frente de 8.000 quilômetros, os anos de bloqueio, de miséria, de fome, de epidemias, os anos de tensa edificação econômica, as novas dificuldades e privações, tudo isto integra uma rude escola, porém boa. Um pesado martelo transforma o vidro em pó. Mas, em compensação, forja o aço. O martelo da revolução forja o aço do caráter do povo.
“Quem poderia creditar?” Era preciso acreditar. Pouco depois da insurreição, um dos generais czaristas, Zaleski, escandalizava-se com o fato de que “um porteiro ou um guarda se convertesse num presidente de tribunal; um enfermeiro, em diretor de hospital; um barbeiro, em personalidade importante; um sargento, em comandante supremo; um diarista em prefeito; um carpinteiro, em diretor de empresa”.
“Quem poderia creditar?” Era preciso acreditar. Embora não se acreditasse, os sargentos já derrotavam os generais; o prefeito, antes diarista, rompia a resistência da velha burocracia; o carpinteiro, agora diretor, reconstruía a indústria. “Quem poderia acreditar?” Que tratem agora de acreditar...
Para explicar a paciência que as massas populares da União Soviética demonstraram nos anos da revolução, muitos observadores estrangeiros recorrem, por hábito, à passividade do caráter russo. Grosseiro anacronismo! As massas revolucionárias suportam as privações pacientemente, mas não passivamente. Elas constroem com suas próprias mãos um futuro melhor. E querem criá-lo a qualquer preço. Que o inimigo de classe trate somente de impor a essas massas pacientes sua vontade, de fora. Não, é melhor que não tente!
Para terminar, tratemos de fixar o lugar da Revolução de Outubro não somente na história da Rússia como também na história do mundo. Durante o ano de 1917, no intervalo de oito meses, duas curvas históricas convergem. A Revolução de Fevereiro — este eco tardio das grandes lutas que se travaram nos séculos passados sobre o território dos Países Baixos, Inglaterra, França, quase toda a Europa continental — une-se à série de revoluções burguesas. A Revolução de Outubro proclama e abre a era da dominação do proletariado. É o capitalismo mundial que sofre sobre o território da Rússia a primeira grande derrota. A corrente partiu-se pelo elo mais fraco. Mas foi a corrente e não somente o elo que se quebrou.
O capitalismo como sistema mundial apenas sobrevive, historicamente. Terminou de cumprir sua missão: a elevação do nível de poder e da riqueza humana. A humanidade não pode estancar no degrau alcançado. Só um poderoso impulso das forças de produção e uma organização justa, planificada, em outras palavras, socialista de produção e de distribuição pode assegurar aos homens — a todos os homens — o nível de vida digno de conferir-lhes, ao mesmo tempo, o sentimento inefável de liberdade diante de sua própria economia. De liberdade em duas ordens de relações: primeiramente, o homem não se verá mais obrigado a consagrar sua vida inteira ao trabalho físico; em segundo lugar, já não dependerá das leis do mercado, isto é, da forças cegas e obscuras que operam fora de sua vontade. O homem edificará, livremente, sua economia, quer dizer, ajustada a um plano, o compasso na mão. Trata-se agora de radiografar a anatomia da sociedade, de descobrir todos os seus segredos e submeter todas as suas funções à razão e à vontade do homem coletivo. Neste sentido, o socialismo gera uma nova etapa no crescimento histórico da humanidade. A nosso antepassado, armado pela primeira vez com um machado de pedra, toda a natureza se lhe apresenta como a conjuração de um poder misterioso e hostil. Mais tarde, as ciências naturais, em estreita colaboração com a tecnologia prática, iluminaram a natureza, até suas mais profundas entranhas. Por meio da energia elétrica, o físico elabora seu juízo sobre o núcleo atômico. Não está longe a hora em que — como na ficção — a ciência resolverá a tarefa da alquimia, transformando o esterco em ouro e o ouro em esterco. Lá, onde os demônios e as fúrias da natureza se desatavam, reina agora cada vez mais corajosamente a vontade do homem.
Mas, enquanto lutava furiosamente com a natureza, o homem criou às cegas relações com os demais, assim como as abelhas e as formigas. Com atraso e por demais indeciso, deparou com os problemas da sociedade humana. Começou pela religião para depois passar à política. A Reforma trouxe o primeiro êxito do individualismo e do nacionalismo burguês, no domínio onde imperava uma tradição morta. O pensamento crítico passou da igreja ao Estado. Nascida na luta contra o absolutismo e as condições medievais, a doutrina da soberania popular e dos direitos do homem e do cidadão ampliou-se e fortaleceu-se. Assim se formou o sistema do parlamentarismo. O pensamento crítico penetrou no domínio da administração do Estado. O racionalismo político da democracia significou a mais alta conquista da burguesia revolucionária.
Entre a natureza e o Estado interpôs-se a economia. A técnica libertou o homem da tirania dos velhos elementos: a terra, a água, o fogo, o ar, para submetê-los em seguida à sua própria tirania. A atual crise mundial comprova de maneira particularmente trágica como este dominador altivo e audaz da natureza permanece escravo dos poderes cegos de sua própria economia. A tarefa histórica de nossa época consiste em substituir o jogo anárquico do mercado por um plano racional, e disciplinar as forças de produção, em obrigá-las a operar em harmonia, servindo docilmente às necessidades do homem. Somente sobre esta base social o homem poderá repousar suas costas fatigadas. Não os eleitos, mas todos e todas, tornando-se cidadãos com plenos poderes. No entanto, ainda não é esta a meta do caminho. Não. Isto não é mais que o princípio. O homem considera-se o coroamento da criação. Tem para isto, sim, certos direitos. Mas quem se atreve a afirmar que o homem atual seja o último representante, o mais elevado da espécie homo sapiens? Ninguém. Tanto fisicamente como espiritualmente, está muito longe da perfeição este aborto biológico cujo pensamento está enfermo e que não criou um novo equilíbrio orgânico.
É verdade que a humanidade produziu mais de uma vez gigantes do pensamento e da ação que superam os seus contemporâneos, como picos numa cadeia de montanhas. O gênero humano tem perfeito direito de orgulhar-se dos seus Aristóteles, Shakespeare, Darwin, Beethoven, Goethe, Marx, Edison, Lenin. Mas por que esses homens são tão raros? Antes de tudo porque saíram, quase sem exceção, das classes médias e elevadas. Salvo raras exceções, os gênios perdem-se afogados nas entranhas oprimidas do povo, antes de ter possibilidade de brotar. Mas também porque o processo de desenvolvimento e de educação do homem permanece, em sua essência, como obra do acaso, não como resultado de elaboração teórica, ou pela prática, de maneira alheia à consciência e à vontade.
A antropologia, a biologia, a fisiologia, a psicologia reuniram verdadeiras montanhas de materiais para erigir ante o homem, em toda sua amplitude, as tarefas de seu próprio aperfeiçoamento corporal e espiritual e de seu desenvolvimento ulterior. Pela mão genial de Sigmund Freud, a psicanálise levantou a tampa do poço que, poeticamente, se chama a “alma” do homem. E o que revelou? Nosso pensamento consciente não constitui mais que uma pequena parte do trabalho das obscuras forças psíquicas. Sábios descem aos fundos dos oceanos e fotografam a fauna misteriosa das águas. Para que o pensamento humano desça até as profundezas de seu próprio oceano psíquico deve iluminar as forças motrizes, misteriosas, da alma e submetê-las à razão e à vontade. Quando eliminar as forças anárquicas de sua própria sociedade, o homem integrar-se-á aos laboratórios e aos cadinhos do químico. Pela primeira vez, a humanidade considerar-se-á a si mesma como matéria-prima e, no melhor dos casos, como semifabricação física e psíquica. O socialismo significará um salto do reino da necessidade ao reino da liberdade, no sentido de que o homem de hoje, esmagado pelo peso das contradições e sem harmonia, abrirá o caminho a uma nova espécie humana, mais feliz.
Nota:
Czar: uma adaptação do latim Cesar.
Cossaco: cavaleiro livre, servo liberto que levava uma vida seminômade na região sul da Rússia na época imperial; em geral, era fiel à monarquia e tinha mentalidade reacionária; uma parte dos cossacos aderiu à Revolução Russa ou se manteve neutra, outra parte ficou com os brancos na guerra civil. Depois da guerra civil, as comunidades cossacas foram proibidas e integradas aos kolkhozes e sovkhozes.
Pogrom: literalmente “devastação”, a expressão mais comum é “pogrom de judeus”, megaoperações de extermínio de comunidades judias que ocorriam frequentemente durante o período imperial na Rússia, com anuência do imperador.
Nagaika: chicote curto e semirrígido, feito de couro, utilizado pelos cossacos para cavalgar e também para agredir as pessoas.
Bolchevique: maioria.
Soviet: conselho.
Kolkhoz: “Kollektivnoe khoziaistvo”, fazendas coletivas.
Gosplan: “gossudarstvenni plan”, plano estatal; era o ministério encarregado de elaborar e fazer cumprir os planos quinquenais.
Piatiletka: plano quinquenal.
Em setembro de 1917, Lenin, obrigado a viver na clandestinidade, deu o sinal: “A crise está madura, aproxima-se a hora da insurreição”. Estava certo. As classes dominantes caíram impotentes diante dos problemas da guerra, do campo e da libertação nacional. A burguesia perdeu definitivamente a cabeça. Os partidos democratas, os mencheviques e os socialistas-revolucionários dissiparam o último resto da confiança das massas, sustentando a guerra imperialista por sua política de compromissos e de concessões aos proprietários burgueses e feudais. O exército, abalado na sua consciência, negava-se a lutar pelos objetivos do imperialismo, que lhe eram estranhos. Sem atender às exortações “democráticas”, os camponeses expulsaram os latifundiários de seus domínios. A periferia nacional do império, oprimida, lançou-se contra a burocracia de Petrogrado. Nos mais importantes Conselhos de operários e soldados os bolcheviques dominavam. Operários e soldados exigiam fatos. O abscesso estava maduro. Só faltava um corte de bisturi.
A insurreição só se tornou possível nessas condições sociais e políticas. E assim aconteceu inelutavelmente. Mas não se pode brincar com a insurreição. Desgraçado do cirurgião que utiliza o bisturi com negligência. A insurreição é uma arte: tem as suas leis e as suas próprias regras.
O partido realizou a insurreição de Outubro com um cálculo frio e uma resolução ardente. Graças a isto pôde triunfar quase sem vítimas. Por meio dos soviets vitoriosos, os bolcheviques puseram-se à frente do país que compreende a sexta parte da superfície terrestre. Suponho que a maioria dos meus ouvintes de hoje ainda não se ocupavam com a política em 1917. Tanto melhor. A jovem geração tem diante de si muitas coisas interessantes, mas não fáceis. Por outro lado, os representantes da velha geração, nesta sala, recordarão muito bem como se recebeu a tomada do poder pelos bolcheviques: como um equívoco, uma curiosidade, um escândalo, ou ainda, um pesadelo, que se desvaneceria ao primeiro clarão da alvorada. Os bolcheviques manteriam o poder apenas por vinte e quatro horas, uma semana, um mês, um ano. Era preciso ampliar cada vez mais o prazo. Os amos do mundo armavam-se contra o primeiro Estado proletário: desencadeamento da guerra civil, novas e novas intervenções, bloqueio. Assim passou um ano. Passou outro. E a historia já tem que contar quinze anos de existência do poder soviético. Sim, diria algum adversário: a aventura de Outubro mostrou-se muito mais sólida do que pensávamos. Quiçá não fosse de todo uma “aventura”. E, não obstante, a questão conserva toda a sua força: o que se obteve a este preço tão elevado? Pode-se dizer que se realizaram as belezas anunciadas pelos bolcheviques antes da insurreição? Antes de responder ao suposto adversário, observemos que esta pergunta não é nova. Ao contrário, remonta aos primeiros passos da Revolução de Outubro, depois do nascimento da República dos Soviets.
O jornalista francês Claude Anet, que estava em Petrogrado durante a revolução, escrevia, a 27 de outubro de 1917: “Os maximalistas — era assim que os franceses chamavam os bolcheviques naquela época — tomaram o poder e amanheceu o grande dia. Enfim, digo-me, vou ver como se realiza o ‘Éden Socialista’ que eles nos prometem há tantos anos... Admirável aventura! Posição privilegiada!”, etc. Que autêntico ódio se ocultava por trás dessas saudações irônicas! No dia seguinte à ocupação do Palácio de Inverno, o jornalista francês julgava-se com o direito de exigir um cartão de entrada no Paraíso. Quinze anos transcorreram desde a insurreição. Com uma falta de cerimônia ainda maior, os adversários manifestavam sua alegria maligna ao comprovar que, ainda hoje, o país dos soviets se assemelha muito pouco ao reino do bem-estar geral. Por que, então, a revolução? Por que suas vítimas?
Caros ouvintes: creio que estou entre aqueles que melhor conhecem as contradições, as dificuldades, as faltas e as insuficiências do regime soviético. Pessoalmente, jamais tratei de dissimulá-las, nem oralmente nem por escrito. Sempre acreditei — e sigo acreditando — que a política revolucionária, ao contrário da política conservadora, não pode se basear no engodo. “Exprimir o que é” — tal deve ser o princípio essencial do Estado operário. Não obstante, é necessário ter perspectiva, tanto na crítica como na atividade criadora. O subjetivismo é um péssimo conselheiro, sobretudo quando se trata de grandes questões. Os prazos devem estar em consonância com a magnitude das tarefas, e não com os caprichos individuais. Quinze anos! Que significam para uma vida? Entretanto, numerosos são aqueles da nossa geração que foram enterrados; e, nos sobreviventes, multiplicam-se os cabelos brancos. Mas esses mesmos quinze anos não representam mais que um piscar de olhos na vida de um povo. Nada mais do que um minuto no relógio da História!
O capitalismo precisou de séculos para afirmar-se na luta contra a Idade Média, para elevar a ciência e a técnica, para construir vias férreas, para estender fios elétricos. E depois? Depois lançou a humanidade no inferno das guerras e das crises. Ao socialismo, seus adversários, isto é, os partidários do capitalismo, não concedem mais do que quinze anos para instaurar sobre a terra o paraíso com todo o conforto moderno. Não. Não assumimos tal obrigação. Não estabelecemos tais prazos. Devem-se medir os processos das grandes transformações com uma escala adequada. Não sei se a sociedade socialista se assemelharia ao paraíso bíblico. Duvido muito. Na União Soviética não existe ainda o socialismo. E sim um estado de transição, cheio de contradições, carregando a pesada herança do passado, sofrendo a pressão inimiga dos Estados capitalistas. A Revolução de Outubro proclamou o princípio da nova sociedade. A República dos Soviets apenas mostrou a primeira etapa de sua realização. A primeira lâmpada de Edson foi muito imperfeita. Devemos saber distinguir o futuro através das faltas e dos erros da primeira edificação socialista.
E as calamidades que se abatem sobre os seres vivos? Os resultados da revolução justificam as vítimas que ela causou? Pergunta estéril e profundamente retórica! Como se o processo histórico resultasse de um balanço contábil. Com tanto mais razão, ante as dificuldades e as penas da existência humana, poder-se-ia perguntar: “Vale a pena viver para isso?”. Heine escreveu a este propósito: “E o tolo aguarda uma resposta”. As meditações melancólicas não impediram o homem de fecundar e nascer. Ainda nesta época, de uma crise mundial sem precedentes, os suicídios constituem, felizmente, uma porcentagem muito baixa. Pois os povos não têm o costume de buscar refúgio no suicídio. Aliviam-se das cargas insuportáveis pela revolução. Por outro lado, quem se indigna por causa das vítimas da revolução socialista? Quase sempre são os mesmos que preparam e glorificam as vítimas da guerra imperialista ou, pelo menos, os que se acomodaram facilmente ao conflito. Também nós poderíamos perguntar: Justifica-se a guerra? O que ela nos deu? O que nos ensinou?
Em seus onze volumes de difamação contra a grande Revolução Francesa, o historiador Hipólito Taine descreve, não sem sórdida alegria, os sofrimentos do povo francês nos anos da ditadura jacobina e nos que a ela se seguiram. Foram, sobretudo, penosos para as camadas inferiores das cidades, os plebeus que, como sans-culottes, deram à revolução o melhor de sua alma. Eles ou suas mulheres passavam noites frias nas filas para voltar no dia seguinte com as mãos vazias ao lar gelado. No décimo ano da revolução, Paris era mais pobre que antes da insurreição. Dados cuidadosamente escolhidos e artificiosamente completados servem a Taine para fundamentar seu veredictum destruidor contra a revolução: “Olhai os plebeus. Queriam ser ditadores e caíram na miséria!” É difícil imaginar um moralista mais hipócrita. Em primeiro lugar, se a revolução lançou o país na miséria, a culpa recairia antes de tudo sobre as classes dirigentes, que empurravam o povo à revolução. Em segundo lugar, a grande revolução francesa não se esgotou nas filas da fome, diante das padarias. Toda a França moderna e, sob certos aspectos, toda a civilização moderna emergiram da Revolução Francesa.
No curso da guerra civil dos Estados Unidos morreram 500 mil homens. Justificam-se essas vítimas? Do ponto de vista do dono de escravos americano e das classes dominantes da Grã-Bretanha, não. Do ponto de vista do negro e do operário britânico, completamente. E do ponto de vista do desenvolvimento da humanidade, no seu conjunto, não há a menor dúvida. Da guerra civil dos anos 60 saíram os Estados Unidos atuais, com a sua iniciativa prática e veloz, a técnica racionalizada, o auge econômico. Sobre essas conquistas do americanismo, a humanidade edificará a nova sociedade.
A Revolução de Outubro penetrou mais profundamente que todas as precedentes no âmago da sociedade, nas relações de propriedade. Prazos maiores são necessários para que se manifestem as forças criadoras da revolução em todos os domínios da vida. Mas a orientação geral é clara desde já: a República do Soviets não tem por que abaixar a cabeça nem empregar a linguagem da desculpa diante dos seus acusadores capitalistas. Para apreciar o novo regime do ponto de vista do desenvolvimento humano, há que se focalizar, acima de tudo, esta questão: de que maneira se exterioriza o progresso social e como se pode medi-lo? O critério mais objetivo, mais profundo e mais indiscutível é o crescimento da produtividade do trabalho social. A experiência da Revolução de Outubro, sob este ângulo, fornece-nos uma estimativa. Pela primeira vez na história o princípio de organização socialista demonstrou sua capacidade, fornecendo resultados de produção jamais obtidos num curto período. Em cifras globais, a curva do desenvolvimento industrial da Rússia se expressa desta forma: ponhamos para o ano de 1913, o último ano antes da guerra, o número 100. O ano 1920, fim da guerra civil, é o ponto mais baixo da indústria: registra-se apenas 25, isto é, um quarto da produção de antes da guerra. 1929 registra aproximadamente 200. 1932, 300, ou seja, o triplo do que havia nas vésperas da guerra. O quadro aparecerá ainda mais claro à luz dos índices internacionais. De 1925 a 1932, a produção industrial da Alemanha diminuiu aproximadamente uma vez e meia. Na América, aproximadamente dobrou. Na União Soviética, aumentou mais de quatro vezes. As cifras não podem ser mais eloquentes.
De maneira nenhuma pretendo negar ou dissimular os dados sombrios da economia soviética. Os resultados dos índices industriais estão extraordinariamente influenciados pelo desenvolvimento desfavorável da economia agrária, quer dizer, do domínio onde ainda não entraram os métodos socialistas, mas foi arrastado para a coletivização sem preparação suficiente, de maneira mais burocrática do que técnica ou econômica. Esta é uma grande questão, mas ultrapassa os limites da minha conferência.
As cifras apresentadas requerem ainda uma ressalva essencial: os êxitos indiscutíveis e brilhantes da industrialização soviética exigem uma verificação econômica ulterior, do ponto de vista da harmonia recíproca dos diferentes elementos da economia, de seu equilíbrio dinâmico e, por conseguinte, de sua capacidade de rendimento. Aqui são inevitáveis as grandes dificuldades e também os retrocessos. O socialismo não surge em sua forma acabada do Plano Quinquenal como Minerva da cabeça de Júpiter ou Vênus da espuma do mar. Estamos diante de décadas de trabalho obstinado, de falhas, de correções e de reconstrução. Por outro lado, não esqueçamos que a edificação socialista não pode alcançar o seu coroamento senão sobre o plano internacional.
Mesmo o mais desfavorável balanço econômico dos resultados obtidos até agora não poderia revelar outra coisa que a inexatidão dos cálculos preliminares, as falhas do plano e os erros da direção. Mas em caso algum poderia contradizer o fato estabelecido empiricamente: a possibilidade de elevar o trabalho coletivo a uma altura jamais conhecida, com a ajuda dos métodos socialistas. Esta conquista, de uma importância histórica mundial, ninguém poderá ocultar.
Depois do que disse, quase não vale a pena perder tempo para contestar as lamentações segundo as quais a Revolução de Outubro conduziu a Rússia ao ocaso da cultura. Tal é a voz das classes dominantes e dos salões inquietos. A “Cultura” aristocrático-burguesa, derrubada pela revolução proletária, não era mais que um complemento da barbárie. Tanto que foi inacessível ao povo russo, que pouco aportou ao tesouro da humanidade. Mas, também, no que concerne a esta cultura tão chorada pela emigração branca, é preciso esclarecer a questão: em que sentido foi destruída? Num só sentido: o monopólio de uma pequena minoria sobre os bens da cultura desapareceu. No que era realmente cultural permanece intacto. Os “hunos” bolcheviques não pisotearam nem as conquistas do pensamento nem as obras de arte. Pelo contrário, restauraram, cuidadosamente, os monumentos da criação humana e deram-lhes ordem exemplar. A cultura da monarquia, da nobreza e da burguesia converteu-se presentemente na cultura dos museus históricos. O povo visita com fervor esses museus, mas não vive neles. Aprende, constrói. O simples fato de que a Revolução de Outubro tenha ensinado o povo russo, aos numerosos povos da Rússia czarista, a ler e a escrever tem incomparavelmente mais valor do que toda a cultura em conserva da Rússia de outrora. A revolução russa criou a base de uma nova cultura, destinada não aos eleitos, mas a todos. As massas do mundo inteiro sentem-no: daí a sua simpatia pela União Soviética tão ardente como era antes o seu ódio contra a Rússia czarista.
Caros ouvintes: vós sabeis que a linguagem humana representa um instrumento insubstituível, não somente porque designa as coisas e os fatos, mas também porque os afirma. Descartando o acidental, o episódico, o artificial, absorve o real, condensa-o. Notai com que sensibilidade as línguas das nações civilizadas distinguiram duas épocas no desenvolvimento da Rússia. A cultura aristocrática trouxe ao mundo barbarismos tais como czar, cossaco, pogrom, nagaika. Conheceis essas palavras e sabeis seu significado. A Revolução de Outubro levou a todas as línguas do mundo palavras tais como: bolchevique, soviets, kolkhoz, Gosplan piatiletka1. Aqui a linguística prática emite seu julgamento histórico.
O significado mais profundo da revolução — e que mais dificilmente se submeteu a uma nova prova imediata — consiste em que forma e tempera o caráter do povo. A imagem do povo russo como um povo lento, passivo, melancólico, místico, está há muito difundida, e isto não é casual. Tem suas raízes no passado. Mas ainda não se levaram suficientemente em consideração, no Ocidente, as modificações profundas que a Revolução de Outubro introduziu no caráter do povo russo. E podia esperar-se outra coisa? Todo homem que tem uma experiência de vida pode despertar em sua memória a imagem de um adolescente qualquer, dele conhecido, que — impressionável, lírico, sentimental, enfim — se transforma, mais tarde, de um só golpe, sob a ação de forte choque moral, num homem forte, bem temperado até o ponto de ficar completamente desconhecido. No desenvolvimento de toda uma nação, a revolução realiza transformações análogas. A insurreição de fevereiro contra a autocracia, a luta contra a nobreza, contra a guerra imperialista pela paz, pela terra, pela igualdade nacional, a insurreição de outubro, a derrubada da burguesia e dos partidos com tendências a sustentá-la, três anos de guerra civil sobre uma frente de 8.000 quilômetros, os anos de bloqueio, de miséria, de fome, de epidemias, os anos de tensa edificação econômica, as novas dificuldades e privações, tudo isto integra uma rude escola, porém boa. Um pesado martelo transforma o vidro em pó. Mas, em compensação, forja o aço. O martelo da revolução forja o aço do caráter do povo.
“Quem poderia creditar?” Era preciso acreditar. Pouco depois da insurreição, um dos generais czaristas, Zaleski, escandalizava-se com o fato de que “um porteiro ou um guarda se convertesse num presidente de tribunal; um enfermeiro, em diretor de hospital; um barbeiro, em personalidade importante; um sargento, em comandante supremo; um diarista em prefeito; um carpinteiro, em diretor de empresa”.
“Quem poderia creditar?” Era preciso acreditar. Embora não se acreditasse, os sargentos já derrotavam os generais; o prefeito, antes diarista, rompia a resistência da velha burocracia; o carpinteiro, agora diretor, reconstruía a indústria. “Quem poderia acreditar?” Que tratem agora de acreditar...
Para explicar a paciência que as massas populares da União Soviética demonstraram nos anos da revolução, muitos observadores estrangeiros recorrem, por hábito, à passividade do caráter russo. Grosseiro anacronismo! As massas revolucionárias suportam as privações pacientemente, mas não passivamente. Elas constroem com suas próprias mãos um futuro melhor. E querem criá-lo a qualquer preço. Que o inimigo de classe trate somente de impor a essas massas pacientes sua vontade, de fora. Não, é melhor que não tente!
Para terminar, tratemos de fixar o lugar da Revolução de Outubro não somente na história da Rússia como também na história do mundo. Durante o ano de 1917, no intervalo de oito meses, duas curvas históricas convergem. A Revolução de Fevereiro — este eco tardio das grandes lutas que se travaram nos séculos passados sobre o território dos Países Baixos, Inglaterra, França, quase toda a Europa continental — une-se à série de revoluções burguesas. A Revolução de Outubro proclama e abre a era da dominação do proletariado. É o capitalismo mundial que sofre sobre o território da Rússia a primeira grande derrota. A corrente partiu-se pelo elo mais fraco. Mas foi a corrente e não somente o elo que se quebrou.
O capitalismo como sistema mundial apenas sobrevive, historicamente. Terminou de cumprir sua missão: a elevação do nível de poder e da riqueza humana. A humanidade não pode estancar no degrau alcançado. Só um poderoso impulso das forças de produção e uma organização justa, planificada, em outras palavras, socialista de produção e de distribuição pode assegurar aos homens — a todos os homens — o nível de vida digno de conferir-lhes, ao mesmo tempo, o sentimento inefável de liberdade diante de sua própria economia. De liberdade em duas ordens de relações: primeiramente, o homem não se verá mais obrigado a consagrar sua vida inteira ao trabalho físico; em segundo lugar, já não dependerá das leis do mercado, isto é, da forças cegas e obscuras que operam fora de sua vontade. O homem edificará, livremente, sua economia, quer dizer, ajustada a um plano, o compasso na mão. Trata-se agora de radiografar a anatomia da sociedade, de descobrir todos os seus segredos e submeter todas as suas funções à razão e à vontade do homem coletivo. Neste sentido, o socialismo gera uma nova etapa no crescimento histórico da humanidade. A nosso antepassado, armado pela primeira vez com um machado de pedra, toda a natureza se lhe apresenta como a conjuração de um poder misterioso e hostil. Mais tarde, as ciências naturais, em estreita colaboração com a tecnologia prática, iluminaram a natureza, até suas mais profundas entranhas. Por meio da energia elétrica, o físico elabora seu juízo sobre o núcleo atômico. Não está longe a hora em que — como na ficção — a ciência resolverá a tarefa da alquimia, transformando o esterco em ouro e o ouro em esterco. Lá, onde os demônios e as fúrias da natureza se desatavam, reina agora cada vez mais corajosamente a vontade do homem.
Mas, enquanto lutava furiosamente com a natureza, o homem criou às cegas relações com os demais, assim como as abelhas e as formigas. Com atraso e por demais indeciso, deparou com os problemas da sociedade humana. Começou pela religião para depois passar à política. A Reforma trouxe o primeiro êxito do individualismo e do nacionalismo burguês, no domínio onde imperava uma tradição morta. O pensamento crítico passou da igreja ao Estado. Nascida na luta contra o absolutismo e as condições medievais, a doutrina da soberania popular e dos direitos do homem e do cidadão ampliou-se e fortaleceu-se. Assim se formou o sistema do parlamentarismo. O pensamento crítico penetrou no domínio da administração do Estado. O racionalismo político da democracia significou a mais alta conquista da burguesia revolucionária.
Entre a natureza e o Estado interpôs-se a economia. A técnica libertou o homem da tirania dos velhos elementos: a terra, a água, o fogo, o ar, para submetê-los em seguida à sua própria tirania. A atual crise mundial comprova de maneira particularmente trágica como este dominador altivo e audaz da natureza permanece escravo dos poderes cegos de sua própria economia. A tarefa histórica de nossa época consiste em substituir o jogo anárquico do mercado por um plano racional, e disciplinar as forças de produção, em obrigá-las a operar em harmonia, servindo docilmente às necessidades do homem. Somente sobre esta base social o homem poderá repousar suas costas fatigadas. Não os eleitos, mas todos e todas, tornando-se cidadãos com plenos poderes. No entanto, ainda não é esta a meta do caminho. Não. Isto não é mais que o princípio. O homem considera-se o coroamento da criação. Tem para isto, sim, certos direitos. Mas quem se atreve a afirmar que o homem atual seja o último representante, o mais elevado da espécie homo sapiens? Ninguém. Tanto fisicamente como espiritualmente, está muito longe da perfeição este aborto biológico cujo pensamento está enfermo e que não criou um novo equilíbrio orgânico.
É verdade que a humanidade produziu mais de uma vez gigantes do pensamento e da ação que superam os seus contemporâneos, como picos numa cadeia de montanhas. O gênero humano tem perfeito direito de orgulhar-se dos seus Aristóteles, Shakespeare, Darwin, Beethoven, Goethe, Marx, Edison, Lenin. Mas por que esses homens são tão raros? Antes de tudo porque saíram, quase sem exceção, das classes médias e elevadas. Salvo raras exceções, os gênios perdem-se afogados nas entranhas oprimidas do povo, antes de ter possibilidade de brotar. Mas também porque o processo de desenvolvimento e de educação do homem permanece, em sua essência, como obra do acaso, não como resultado de elaboração teórica, ou pela prática, de maneira alheia à consciência e à vontade.
A antropologia, a biologia, a fisiologia, a psicologia reuniram verdadeiras montanhas de materiais para erigir ante o homem, em toda sua amplitude, as tarefas de seu próprio aperfeiçoamento corporal e espiritual e de seu desenvolvimento ulterior. Pela mão genial de Sigmund Freud, a psicanálise levantou a tampa do poço que, poeticamente, se chama a “alma” do homem. E o que revelou? Nosso pensamento consciente não constitui mais que uma pequena parte do trabalho das obscuras forças psíquicas. Sábios descem aos fundos dos oceanos e fotografam a fauna misteriosa das águas. Para que o pensamento humano desça até as profundezas de seu próprio oceano psíquico deve iluminar as forças motrizes, misteriosas, da alma e submetê-las à razão e à vontade. Quando eliminar as forças anárquicas de sua própria sociedade, o homem integrar-se-á aos laboratórios e aos cadinhos do químico. Pela primeira vez, a humanidade considerar-se-á a si mesma como matéria-prima e, no melhor dos casos, como semifabricação física e psíquica. O socialismo significará um salto do reino da necessidade ao reino da liberdade, no sentido de que o homem de hoje, esmagado pelo peso das contradições e sem harmonia, abrirá o caminho a uma nova espécie humana, mais feliz.
Nota:
Czar: uma adaptação do latim Cesar.
Cossaco: cavaleiro livre, servo liberto que levava uma vida seminômade na região sul da Rússia na época imperial; em geral, era fiel à monarquia e tinha mentalidade reacionária; uma parte dos cossacos aderiu à Revolução Russa ou se manteve neutra, outra parte ficou com os brancos na guerra civil. Depois da guerra civil, as comunidades cossacas foram proibidas e integradas aos kolkhozes e sovkhozes.
Pogrom: literalmente “devastação”, a expressão mais comum é “pogrom de judeus”, megaoperações de extermínio de comunidades judias que ocorriam frequentemente durante o período imperial na Rússia, com anuência do imperador.
Nagaika: chicote curto e semirrígido, feito de couro, utilizado pelos cossacos para cavalgar e também para agredir as pessoas.
Bolchevique: maioria.
Soviet: conselho.
Kolkhoz: “Kollektivnoe khoziaistvo”, fazendas coletivas.
Gosplan: “gossudarstvenni plan”, plano estatal; era o ministério encarregado de elaborar e fazer cumprir os planos quinquenais.
Piatiletka: plano quinquenal.
Fonte: Sítio da LIT-QI
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